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O blog da Nina, menina que lia quadrinhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Outro Sonho / Conto

Outro Sonho / Conto

     Joaquim também sonha. Sonhou.
     _O que você acha desse sonho? Eu achei que era algo caro, mas ele disse, enquanto dirigia o carro pequeno e usado, que iria de mudança para a Itália. Além de tudo, o que significa sonhar com gente que já morreu? Devem ser as notícias que andam me influenciando.
     Passaram-se trinta e seis horas do sonho, e surge o problema.
     Veio o ciclone e destruiu a casa.
     _Agora, quem está a pé sou eu, disse Joaquim. Não posso mudar os fatos.
     Enquanto ele constatava a realidade, percebeu que alguém estava mudando
a realidade do falecido. O falecido tinha vendido a casa por causa de um temporal que se repetia e se repetia, e ele nada mais fazia do que consertat o estrago do temporal.
     Joaquim queria consertar a casa, e pensou no prejuízo e levantar o dinheiro do conserto. Foi ao banco e descobriu que tinha recebido a quadra da quina que estava acumulada e que o conserto não seria dispendioso.
     De novo, o sonho.
     Joaquim não estava mais a pé. Ele sabia o que deveria fazer.
     Joaquim deveria simplesmente reafirmar que há casos em que não há culpa nem crítica, porque pertence à realidade fática do indivíduo. O falecido tinha vendido a casa por motivo certo e justo e a história não poderia ser modificada.
     Nisso toca o telefone:
     _Joaquim a seu dispor, por favor.
     Do outro lado da linha, um amigo pedindo para que ele evitasse sons baixos e repetidos, pois as fakes news estavam usando mensagens subliminares hipnóticas para fazer com que as pessoas acreditassem como realidade o que não era tido como realidade pessoal, uma espécie de hipnose coletiva, mas com o fim de dominar as mentes desprevenidas. 
     Joaquim desligou o telefone e pensou em voz alta:
     _Que sonho!
     Joaquim olhou para a casa e pensou de novo:
     _E vai acontecer de novo. E pode acontecer comigo.
     A essa altura, o vizinho vem reclamar da bagunça.
     Joaquim, conhecendo o vizinho há mais de quarenta anos, responde:
     _O senhor sabe quantas vezes o senhor me telefonou para comprar esta casa?
     O vizinho responde:
     _Eu não lembro de ter interesse na sua casa.
     Joaquim respondeu que ele lembrava do tempo que a casa havia sido recém-pintada, quando recebeu a ligação para comprar a casa.
     _Desculpe perguntar, o senhor ainda tem aquela loja?
     O vizinho, enfezado com a resposta, respondeu:
     _Como é que o senhor sabe que eu tenho loja noutra cidade?
     _Porque o senhor me telefonou da loja.
     Joaquim refletiu que a realidade não pode ser mudada com projetos pretéritos.
     O vizinho estava zangado, e Joaquim entrou no cômodo que não havia sido danificado e resolveu assistir as notícias ao celular.
     Ele ouve sobre o discurso do ódio e desliga o noticiário. Reclama em voz alta:
     _Nessa situação pandêmica, com consertos, eu lá quero saber de discurso de ódio.
     Nesse íterim passava alguém na rua que, ao olhar para a casa, ouviu a reclamação. 
     Ele chama o Joaquim:
     _O senhor Joaquim, estou passando na rua e ouvi o senhor reclamar do discurso do ódio, mas há um vizinho que usa de maledicência contra o senhor há mais de vinte anos. Suponha que eu lhe chamasse para reclamar da bagunça porque alguém se queixa do senhor. O discurso do ódio é mais ou menos isso: alguém fica atiçando o cachorro até que o cachorro morde. Permita lhe contar uma história:
     "Era uma vez uma casa com um cachorro para fazer companhia e barulho se chegasse gente estranha no portão da casa. A dona da casa tinha hora para sair e pegar os filhos dela na escola. Todos os dias, enquanto ela não estava, alguns moleques, na saída da escola próxima à casa dela, atiravam pedras no cachorro, mas do lado de fora do portão. O cachorro latia contra os moleques, mas acabava machucado com as pedras. Um dia, ao receber visitas, outra senhora entrou com o filho, que estava com o mesmo uniforme dos moleques, e o cachorro, ao ver o portão aberto e o garoto com uniforme, atacou ferozmente o garoto, e por sorte, apesar de ferido, não morreu."
     O homem perguntou ao Joaquim:
     _O que o senhor acha dessa história?
     _Eu sei dessa história e esse é o discurso do ódio, mas o que é que eu posso fazer?
     O homem respondeu que o discurso do ódio precisava ser tipificado no Código Penal.
     A conversa com o passante acabou por distrair Joaquim.
     O dia acabou e Joaquim tinha muito a fazer, inclusive se cuidar com a pandemia. Lembrou-se da pandemia e sentia-se bem por ter usado a máscara e a distância social ao conversar.  

      
           
     

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