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O blog da Nina, menina que lia quadrinhos.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Délia - A Compreensão / Conto

Délia - A Compreensão / Conto


     O que dizer de Délia? Délia e o seu sorriso seco.
     Délia não aceitava afeto. Estava presente, às vezes, melhor que não estivesse.
     Cibele, para quem a vida era recheada de sentimentos, reparava, implicava, mas se magoava com as atitudes de Délia.
     Cibele tinha um caráter peculiar, guardava perguntas ao tempo, quando não as escrevia, para que jamais as esquecesse, a associava com algum presente de aniversário.
     Délia, sarcástica, gostava de dizer que era observadora.
     Cibele sentiu o que isso significava. Significava que Délia conhecia a sua crítica.
     Por uma daquelas coincidências que ninguém explica, ambas adoeceram, foram para quartos de enfermaria conjugados no mesmo hospital.
     Por terem uma à outra como companheiras de medicações, eram obrigadas a conversar.
     _Délia, se eu me for antes que você, olhe aquela fotografia.
     Cibele, até mesmo levantou-se um pouco da cama hospitalar, e perguntou:
     _Qual fotografia?
     A fotografia da festa.
     Cibele não deixaou para depois. No horário de visitas, pediu ao marido que procurasse a fotografia descrita por Délia e a trouxesse ao hospital.
     No dia seguinte, Cibele recebeu a fotografia descrita por Délia.
     No que acabou o horário das visitas, Cibele pediu a Délia o que continha aquela fotografia de tão especial.
     _O meu olhar.
     Cibele olhou para a fotografia e viu o olhar enfadado, como quem diz que a festa estava feita e terminada. Disse à Délia que ela estava aborrecida, e que não deveria ter se ocupado com festa caso não quisesse.
     _Deveria, respondeu Délia.
     Cibele questionou se, por acaso, tinha aquele dever.
     _Tinha. Olhe o meu olhar de novo.
     Cibele, mais solta na linguagem, comentou:
     _O seu olhar olha para um lugar onde não tem convidados, mas afirmativamente.
     Délia replicou:
     _Exatamente.
     Cibele perguntou o que é que ela queria dizer com isso.
     Délia respondeu:
     _Esta fotografia te salva de ter um destino igual ao meu.
     Cibele perguntou, se ela, Délia, acreditava que ela, Cibele, pudesse se tornar igual a ela.
     _ Completamente. Essa fotografia aponta para onde você possa não estar.
     Cibele marcou o local exato de não estar. Poderia implicar com Délia, mas era melhor não estar no lugar marcado na fotografia, uma bancada de madeira onde os caminhantes paravam para tomar água.
     As duas se recuperaram e foram para as suas casas. 
     Algum tempo se passou, e Cibele conheceu algumas pessoas na sua aula de ginástica, e essas pessoas frequentavam aquele lugar.
     Cibele conversava com as colegas de ginástica, sabia que elas caminhavam e, depois descansavam e tomavam água naquele lugar. Lembrava-se da Délia e da fotografia, mas quem frequentava o lugar eram as suas colegas, mesmo porque ela não era adepta de caminhadas.
     Em todas as aulas de ginástica, mesmo sabendo que Cibele não gostava de ir àquele lugar, as colegas comentavam, que naquela bancada havia uma sensação de paz espiritual, que a luz atravessava as árvores frondosas, e que o único incoveniente eram as pombas arrulhando por todo o lugar.
     Em todas as aulas, Cibele tinha que se negar a ir até a praça, embora não soubesse o motivo da fotografia que Délia havia lhe mostrado no hospital.
     Essa conversa do lugar onde tinha água para os caminhantes era repetida todas as semanas.
     Cibele começou a não suportar mais ouvir falar da bancada, onde tinha um lugar para beber água durante uma caminhada.
     Aos poucos, começou a se sentir cansada sem motivo. A ginástica se transformava numa obrigação terrível, achou mesmo que estava ficando doente.
     Assistia as aulas esperando o momento de ouvir da bancada onde os caminhantes paravam para beber água.
     Cibele começou a se dessensibilizar, e quase nenhum assunto a afligia.
     Até que chegou o dia em que Cibele se perdeu dos seus problemas, e seu único pensamento era evitar a bancada onde os caminhantes paravam para beber água.
      Cibele telefonou para Délia, com a qual conversava regularmente de tempos em tempos.
     Perguntou à Délia qual era o significado daquilo pelo qual passava.
     Délia semtransformou. Riu-se com tal despojamento de espírito com o qual Cibele não se lembrava de ter visto.
     _Você me compreendeu, você me compreendeu, exclamava Délia. Você se encontra em estado hipnótico! Pare já com isso! Depois eu te digo sobre esse depois. Evite tudo relacionado com isso, mas depois eu te explico.
     Cibele, muito surpresa com a reação de Délia, sentiu-se como que se estivesse acordando, mas foi ao médico verificar se estava bem de saúde. Estava!
     Passados alguns dias, Délia ligou para Cibele.
     _Cibele, você perdeu as aulas de ginástica. Você encontra outra! Há muitos anos que eu não sorrio, a não ser o meu sorriso enigmático. Agora eu posso sorrir.
     Nesse ínterim, Cibele percebeu que estava acorrentada sem que fosse de fato, saída de um lodo e não de uma bancada de água, a qual ainda doía-lhe imensamente aos ouvidos.
     Cibele compreendera Délia para toda a vida.
       
      
     
       

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