Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

http://frasesemcompromisso.blogs.sapo.pt/

O blog da Nina, menina que lia quadrinhos.

domingo, 16 de maio de 2010

Essa crônica faz parte de um livro que doei a uma biblioteca de Curitiba. Crônica: Mãe de Coração.

Mãe de Coração. Sandra e Pedro não tem filhos e estão casados há 10 anos. Ela sofre de endometriose e até a data de hoje, 7 de fevereiro de 1.975, significa que se trata de um casal estéril. A possibilidade de adoção é um questionamento constante na vida do casal. _Eu sou funcionário público, Sandra. Vivemos em tempos instáveis. Não temos noção do futuro, do que nos acontecerá. Embora eu não participe de nenhum movimento político, é difícil abrir o coração e adotar uma criança quando eu leio o jornal e me assusto com as matérias publicadas. Eu sei que um filho não tem nada a ver com tudo isso. Mas eu sou inseguro, sou filho de um homem que teve problemas na era Vargas. A memória do meu pai e da minha mãe me deixa com a certeza que eu não devo adotar uma criança. Me desculpe. Depois dessa ducha de água fria, Sandra passou a noite chorando e tentando compreender as razões de Pedro. Na manhã seguinte, mais calma, pensou que se fizesse uma atividade fora do lar poderia se distrair e ficou imaginando alguma coisa que lhe desse prazer e ocupasse as sua idéias para tirar essa obsessão por filhos. Quando Pedro chegou para almoçar, ela percebeu que ele estava aborrecido. No entanto estava calmo, então tocou no assunto pensado durante a manhã. _Sandra, você queria estudar francês antes de nos casarmos, depois houveram os problemas de saúde dos meus pais e você estava ao meu lado, depois você teve que cuidar dos seus pais, aí eu mudei de emprego e de vida. Até a gente se acostumar com o serviço público e a estabilidade demora um pouco. Faça o curso de francês que eu te dou de presente e eu ficarei orgulhoso de uma mulher que é a minha esposa falando francês nas festas da repartição. Ela foi pesquisar preços e escolas à tarde. A solidão de uma dona de casa com uma casa limpa e vazia é enorme. Encontrou a escola que queria. Perto da sua casa havia um curso intensivo de francês em três anos, 6 horas de aula por semana, 4 alunos em cada sala de aula, atendimento personalizado, preço razoável. Se matriculou. No primeiro dia de aula conheceu os seu colegas, que eram: uma senhora que dizia-se alemã chamada Gertrudes, um estudante universitário de 20 anos, chamado Reinaldo, uma moça que procurava emprego na alta hotelaria e precisava falar francês, chamada Nancy, uma adolescente de 14 anos chamada Angélica e ela, Sandra, 35 anos e querendo um ócio produtivo. Todos se trataram com educação e respeito. Aconteceu um incidente nos primeiros quinze dias de aula. A professora, que era de uma família de muitas posses foi pega pela diretora usando drogas perto da escola. Ela não foi denunciada à polícia, a sua família ficaria muito constrangida com isso, eram pessoas muito influentes em Ribeirão Preto e a escola avisou os seus parentes A professora Ana foi embora de São Paulo para Ribeirão Preto, sua cidade natal. Apareceu na escola uma semana depois do incidente, para acertar as contas com a direção da escola. Aquela turma para a qual lecionava, estava na escola tendo aulas com a professora Solange. O fato da ex. professora estar na escola aproximou os alunos e Angélica perguntou para Sandra: _Você viu como ela chorou. O que será que aconteceu com ela? Mandaram ela embora? Sandra pensou e achou melhor não tocar no motivo com a coleguinha. Isso era coisa para se conversar com a mãe ou o pai e respondeu que não sabia muita coisa sobre o fato. Mudou o assunto e perguntou se a menina estudava e quantos anos tinha. _Estudo, estou no último ano do ginásio. Tenho quatorze anos. Sandra olhou bem para a menina e a achou parecida com Pedro. As sobrancelhas, o sorriso, cheinha de corpo, não gorda. Ela simpatizou com a menina no mesmo instante. Se tivesse uma filha gostaria que ela tivesse os traços fisionômicos do marido. Durante as aulas havia um horário especialmente dedicado a conversação entre os alunos, na língua francesa, e, durante essas conversas a Angélica falou que o seu sonho era debutar no Clube Pinheiros. Nessas aulas de conversação não havia nenhum assunto censurado e todos os temas eram discutidos em um francês trôpego, que a professora corrigia. A menina-moça é espírita e acredita em reencarnações e nos espíritas. _E o que você pensa a respeito de crianças?, perguntou Sandra. _A criança é um espírito que é encaminhado para uma família onde possa ser educada com todo o amor e carinho desse mundo. Quando isso não acontece, criam-se carmas e darmas. _E os casais sem filhos?, retrucou Sandra pensando em si mesma. _Os filhos fazem parte do aprendizado espiritual. É sinal que o casal escolheu uma outra maneira de evoluir nesta vida terrena. Sandra se calou e as discussões continuaram. Outro dia foi a vez da Gertrudes, quando o assunto era a política americana. _Roosevelt era comunista e abriu as portas dos Estados Unidos para a Rússia. A professora apoiou a senhora alemã. Angélica interveio e disse que a aula era de francês; o Reinaldo disse que nem ele, que era um alemão legítimo, nascido na Alemanha, diria isso. Olhou para a Sandra e disse: _Radical. Nesse dia Angélica convidou a senhora para conhecer um centro espírita. _Ah, não vou. A minha religião é outra. Me desculpe. _Depois não se queixe. Eu resolvo os meus problemas lá. Pergunto tudo para os espíritos. A minha mãe também vai. Ela que me leva para ver se eu me acalmo. Eu sou muito ansiosa. Ela quer me levar numa psicóloga se eu não melhorar. Sandra mergulhou nas suas angústias pessoais com essa conversa. Não queria nenhuma psicóloga para resolver o seu conflito, que era íntimo demais para ser dividido com uma profissional. Outro dia, foi ela que exagerou, quando a menina se queixou do pai, dizendo que ele foi “grosso” com ela, que ela e a mãe estavam gastando muito dinheiro com a sua festa de quinze anos. Sandra então, senhora de si, respondeu: _Vá se acostumando, os homens são diferentes de nós mulheres. Eles são “grossos” mesmo e é para nos proteger que às vezes eles agem dessa maneira. A professora e a Gertrudes imediatamente disseram que provavelmente esses eram os homens da sua família. Reinaldo se divertiu com o tema. Sandra saiu da aula e chorou. O único homem da sua família era o marido. As aulas iam se sucedendo e uma bonita amizade surgia entre a menina e a jovem senhora. Tolices eram ditas, discussões sobre os quinze anos, sobre a valsa, os medos secretos de cada um. Angélica tinha medo de viajar sozinha com a turma da escola e foi encorajada a enfrentar o medo e sentir que na volta os seus pais estariam contentes de proporcionarem essa viagem à filha. A senhora disse para a menina praticar algum esporte e começou a fazer caminhadas. Se ela indicava o que pensava ser bom, pensou que talvez fizesse bem para si mesma. _Sandra, você sabe tudo, pelo menos tudo que eu quero saber. _Seus pais não conversam com você?, respondeu à jovem. A menina disse que eles conversavam mais, antes do avô ficar doente, mas que agora eles cuidavam dele e da festa de quinze anos dela e ela tinha que procurar saber das coisas por conta própria, já estava moça. Sandra viu que os pais da garota estavam atribulados e resolveu dividir os seus pensamentos com a Angélica. Discutiram os melhores métodos de se estudar para as provas escolares bimestrais. Nesse instante, Sandra se surpreendeu com a experiência que tinha. A menina passou de ano e foi para um bom colégio de 2º grau. Nesse meio tempo a professora chamou Sandra e perguntou se ela achava que a menina tinha dificuldades mentais, porque ela era muito bobinha. _De jeito nenhum, respondeu Sandra, afirmando que deixasse a menina por sua conta, que ela cuidaria da menina enquanto esta estivesse freqüentando as aulas de francês. Sandra cuidou com amor de mãe, que não era e talvez nunca fosse na vida, mas o afeto era de mãe. Às vezes ia para as aulas apenas pensando na menina, que precisava dela e ela sabia disso. Ajudou a mocinha a se comportar corretamente no baile, ensinou a não discutir com os pais, brigou quando soube que a menina bebeu além da conta e pela primeira vez na vida: _O problema não é os seus pais te colocarem de castigo, o problema é que isso não se repita. Você sabe que quem bebe não se cuida dos perigos? E tem mais, eu te quero bem e você sabe disso. Volte onde você deu vexame e mostre que você não bebe, que você é uma moça séria! _Desculpe, Sandra. Não faço mais isso. _HUM...., resmungou a mãe de coração. Angélica voltou várias vezes ao lugar do vexame, suportou as piadas e mostrou que não faria mais esse tipo de extravagância. _Sandra, eu queria mesmo que você fosse ao centro espírita que eu e a minha mãe vamos. Eu acho que você já foi da minha família em alguma encarnação passada. Você podia ser amiga da minha mãe. Na aula seguinte a mãe da menina apareceu na escola para conhecer a Sandra. Cumprimentou e pagou a mensalidade. O pai da menina foi buscá-la na saída e fez questão de dar uma “boa tarde” à senhora. Sandra sabia das suas dificuldades para engravidar e viu que a amizade tinha passado dos limites de coleguismo. A direção colocou as duas em salas diferentes. Não adiantou. Quando se encontravam falavam das dificuldades mútuas. Sandra não se continha. Ela acreditava naquela amizade espiritual e contava meio por cima, respeitando a idade da moça, os seus conflitos. Na outra sala, porém, Sandra entrou disposta a não fazer ligações afetivas. Mas o destino é implacável quando quer. Na outra sala tinha uma outra jovem, a Fabíola, que olhou para a Sandra e não pestanejou: _Você acredita em extraterrestres Sandra? A professora olhou para Sandra e caiu em risadas, com os seus olhos de mestra viu que a Sandra seria adotada por outra jovem. Sandra respondeu: _Se eles me telefonarem, eu acredito! Fabíola ficou fascinada com a possibilidade de outra pessoa aceitar a idéia de conhecer extraterrestres. A professora teve a idéia de juntar as meninas para que elas tivessem uma companhia da mesma idade delas, o que Sandra achou ótimo. Passada uma semana, Fabíola entrou na sala de aula e contou às duas que a Angélica tinha proibido de dizer que se conheceram e tinha contado que ela podia perguntar sobre qualquer assunto para a Sandra. Sandra sabia tudo, na opinião da Angélica. Fabíola também tinha problemas. _Eu preciso de um pouco de ajuda. Pode me ajudar? _Claro que posso. Se estiver ao meu alcance, eu ajudo, senão vou pedir aos seus pais. Agora Sandra aconselhava a outra, a mando da primeira. Sandra descobriu que as jovens têm uma capacidade inimaginável de fazer perguntas. Parecia o final dos tempos porque elas tinham muita pressa em saber de tudo. E Sandra sabia que não sabia muito, ela dava atenção, uma sugestão aqui, outra ali. Evitava assuntos polêmicos, o que era difícil naquela escola, diga-se de passagem. Se sentiu numa encrenca. Não sabia exatamente como lidar com tudo aquilo. Contudo, se sentia mãe e se deu de coração às meninas. Contou tudo à Pedro, que pensava no perigo que era substituir as mães de tal maneira, com tal desprendimento. A maternidade surgiu como um aprendizado espiritual. _Prepare-se para se desligar das meninas após o curso. Você é quem vai sofrer mais. Elas vão seguir as suas vidas e vão esquecer de você, disse Pedro com um certo dó de Sandra. Dois anos se passaram do final do curso. A endometriose ainda não tem cura. Pedro ainda não quer adotar crianças. Sandra encontra Angélica na rua e pergunta como vai. _Que saudades, Sandra. Eu estou na faculdade, trabalho com a minha mãe. E você, teve filhos? _Não. Aceitei a idéia da infertilidade. Sandra e Angélica se abraçaram. Se vêem de vez em quando. Angélica não toca no nome de Fabíola, por mais que Sandra tenha curiosidade de saber algo. Ciúme de irmãs, pensou a senhora com o coração pleno de felicidade. _Venha me ver de vez em quando, Sandra. Disse em tom de pedido e com afeição, Angélica a Sandra. Sandra sorriu e confirmou que iria vê-la de vez em quando. A diretora da escola de francês liga para a casa de Sandra e diz: _Sandra, você foi mãe daquelas meninas. Nós temos os nossos meios de saber o que se passa na escola e vimos o que se passou. Por tua causa, a dona Maria, que trabalhou 6 anos conosco, como zeladora da escola, largou o emprego. O filho dela é adolescente e ela teme que ele não encontre uma pessoa disposta a agir como mãe enquanto ela está trabalhando. Você foi um exemplo de mãe para ela. Sandra se sentiu presenteada pelos espíritos de todos os deuses existentes na face da Terra. Embora nunca fosse mãe, sabia o que era ter filhos. .

Nenhum comentário: