Isso é Armário!
A menina chegou à sua casa cheia de novidades.
Aquele foi um dia repleto de atividades.
Pela manhã, antes da escola, durante a natação haviam criticado um parente dela. Disseram que o Ronaldinho não nada, afunda.
Na escola, a secretária chamou-a para fazer um trabalho na biblioteca porque ela não levou a tarefa pronta. Além do trabalho escolar, a menina teve que ouvir a secretária culpar os seus pais porque não ficaram atentos á lição de casa. A menina não gostou nada da crítica porque ela teve uma festa de aniversário no dia anterior e a mãe estava com ela na festa. Voltaram e foram jantar e dormir. Culpa de ninguém, ou melhor, da aniversariante que as convidou para a festa. Culpa de ninguém.
À tarde, depois dos deveres da escola, foi brincar com suas bonecas. Chegou uma amiga e brincaram de casinha. Pegaram refrigerantes na geladeira, alguns biscoitos e tomaram o lanche. Porém, na hora de brincar de servir biscoito com refrigerante, o copo de plástico caiu da mesa e sujou o chão. Elas pegaram um pano e limparam o chão. Mas criança não sabe limpar o chão, então o chão ficou lambuzado de refrigerante.
À noite, o seu pai chegou de viagem.
Feliz por encontrar esposa e filha, beijou a mulher e perguntou à filha como foram os dias enquanto ele estava viajando.
_Sem você, eu e a mamãe não fazemos a lição de casa, passamos o dia em festas de aniversário e deixamos o chão todo bagunçado de refrigerante. Nós fazemos tudo errado e ainda falam mal dos nossos parentes.
O pai abre os olhos enquanto a mulher o chama para o lanche que o aguarda na cozinha com pães, frios, bolos, café e leite.
O homem sorri e pergunta à mulher o que é que tinha acontecido. Ela contou pausadamente tudo o que aconteceu, divertindo-se com o resumo da menina.
Ele, também com saudades da filha, pede à menina que se sente na cadeira ao lado da dele.
Pega o liquidificador e faz uma pergunta à menina:
_Olhe o lanche que a sua mãe preparou. Temos um lanche delicioso à nossa frente. Mas, se eu colocar o pão, os frios, os bolos, o café, o leite e o açúcar no liquidificador e misturar tudo, o lanche ficará bom?
A menina diz que não.
_Agora vamos pensar diferente. Temos os pães na cesta, os frios em pratos de salada, os bolos em travessas, o bule de café com café, a leiteira com o leite fervido e o açucareiro com açúcar. Agora, o lanche é gostoso?
A menina diz que sim.
_Na vida da gente também é assim. A gente não pode misturar tudo que a gente ouve, faz e sente num liquidificador. O resultado não é bom. A gente separa todas as nossas vivências em gavetas diferentes, como se fosse um armário organizado. Você me entende?
A menina disse que entendeu, mas pensou que estava ouvindo uma repreensão e ficou triste.
O pai, percebendo que a menina ficou triste, disse:
_Não é para ficar triste, é para saber. O nome disso se chama lógica e o armazenamento de tudo isso se chama logística.
A menina olhou para o pai e disse:
_Isso é muito complicado.
O pai disse que não. Ele iria demonstrar para a menina o que ele estava dizendo.
Pegou uma xícara.
_Para tomar café com leite você precisa de uma xícara. Isso é lógica. Você aceita que eu sirva o café com leite para você?
A menina disse que sim.
Ele perguntou a medida de café e a medida do leite e do açúcar para a mulher.
A mulher disse as medidas e aconselhou a menina que assoprasse antes de tomar, como habitualmente fazia, porque tudo estava quente.
O homem repetiu as palavras da mulher:
_Assopre e teste para ver se não está muito quente.
Depois perguntou a filha sobre o pão:
_Onde é que está o pão?
_Na cesta de pães.
Ele explicou que isso era logística.
_Escolha o pão que você quer comer.
A menina escolheu o pão que ela achou mais bonito.
Ele falou do gostar:
_Esse é o seu sentir, a vontade sua ao ver as coisas. Guarde sempre com você os seus gostos, as suas aptidões.
A menina olhou para a mãe e disse:
_Mãe, ele fala difícil com você também?
A mulher não conteve uma gargalhada e disse ao marido que simplificasse a linguagem porque ela era pequena.
O homem assentiu e resumiu:
_Quanto você quer de manteiga? O que você quer de recheio? Deixe que eu abra o pão para você.
A menina disse o que queria.
A mãe colocou uma fatia de bolo junto com o sanduíche que o marido oferecia à filha.
_Podemos lanchar?
Começara a lanchar e a menina sugere à mãe para jogar o liquidificador fora.
A mãe disse não.
A menina vira-se para o pai e pergunta se ele concorda em não jogar o liquidificador no lixo.
_Custou caro. Não.
A menina foi se deitar pensando no valor daquele ensinamento. De que valeria saber de lógica e logística quando ambos guardariam o liquidificador no armário da cozinha.
2 comentários:
Lindo conto e inteligente final!Adorei! bjs, chica
O verbal de sua crônica... levou-me ao extra verbal muito em falta hoje nas famílias. Estão inseridas no "autismo virtual". Essa harmonia em torno da mesa, onde tanto partilhamos, aprendemos, ensinamos, socializamos... é cada vez mais rara.
Abraço.
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