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O blog da Nina, menina que lia quadrinhos.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Paloma / Conto


Paloma / Conto

     Paloma, moça de bom espírito, vinte e um anos, planejando o futuro, pega uma gripe.
     Quinze dias depois e estaria pronta para a próxima. Enganou-se. Passado um mês e uma espécie de recaída aconteceu.
     Caiu de cama, mas sem febre. A tosse a atormentava, a ponto de sentir enjoos. Naquele tempo não havia a multiplicidade de diagnósticos que existem hoje, assim as coisas ficavam como eram.
     Passaram mais quinze dias, e a fraqueza não diminuía.
     A resposta médica foi de que sem febre não haveria de ser nada de grave.
     Compraram xaropes para a tosse, não passava. Fizeram exames e o pulmão estava limpo.
     Paloma começou a emagrecer.
     Não conseguia se alimentar direito e não estava doente.
     As pessoas em volta começaram a dizer que poderia ser uso de substâncias exógenas. Pediu à família que verificasse se Paloma não estava aprontando algo feio.
     Paloma comia o que conseguia e deitava.
     A família de Paloma reclamou com ela:
     _Se você tiver algum mal de amor recolhido, o seu lado traseiro vai esquentar.
     Paloma ria. Não tinha amor nenhum. Era fraqueza mesmo.
     Quando Paloma chegou aos quarenta e nove quilos, disseram que seria bom verificar a tuberculose. Mas a carteira de vacinas estava em dia e não poderia ser tuberculose.
     Então ela decidiu por tomar sulfadiazina e vitamina B. Aproveitou uma saída com um parente e, enquanto ele tratava de negócios, ela foi a farmácia e se automedicou, mas com o consentimento do parente,  porque não tinha diagnóstico.
     Passada uma semana, engordou meio quilo e mais uma semana mais meio quilo e conseguiu chegar aos cinquenta quilos.
     Começou a se alimentar e a ter fome de biscoito. Um pacote de biscoito por dia.
     _Se o biscoito cura, compremos biscoitos.
     À medida que se sentia melhor, às vezes tomava e às vezes não tomava a sulfadiazina. Não tinha médico porque não tinha doença, diziam que eram fraqueza de espírito, e por conta disso ela ía à igreja todos os domingos, o que era útil para mostrar para os comentadores de plantão que a substância exógena só poderia ser Deus.
     Seis meses depois se sentiu curada. A família se alegrava pelo ganho de peso e pela animação da jovem.
     Agora, com seus setenta anos, após um exame de rotina:
     _Verificamos que a senhora teve cisticercose há muitos anos, pois da doença sobraram cicatrizes antigas.
     Deus escreve certo por linhas tortas, assim como Paloma poderia ter morrido, não morreu. A sulfadiazina é remédio taxado de antibiótico e a venda é com prescrição médica. Os jovens que saem, hoje em dia, estão realmente expostos à todo tipo de substâncias, mas naquele tempo, não.
     Paloma está viva porque naquele tempo os pais conheciam os filhos e não dependiam da opinião alheia para confiarem na educação que davam.
     A relatividade da medicina é esta: não existe tratamento para o que não é doença.
       

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