O Trauma
Dizem que a preguiça faz crônica, mas me lembrei do fato e vamos à crônica. Parece que ainda o vejo.
Ele é o professor de inglês que foi engraxate em Nova York durante dois anos.
Todas as aulas eram compostas por detalhes dessa sua experiência. Lá, ele teve automóvel, morava no Brooklin, ganhava gorjetas generosas e conseguiu um visto provisório de moradia para poder se estabelecer comercialmente, engraxar sapatos é ter uma microempresa.
Mas, se os negócios eram bons pelos lados de lá, o que ele fazia cá ministrando aulas e sabidamente ganhando pouco comparando com o padrão de vida que ele obteve por lá?
_Eu ganhava bem, é fato. Imaginem o que é ganhar bem e não conseguir comer o que se deseja. O cardápio não combinava com o paladar que fora treinado aqui, até o hambúrguer tem o sabor diferente, os temperos são outros e se estranha à primeira mordida.
Aqui o engraxate conversa, faz graça e procura ser agradável ao cliente. Lá, o cliente chega, senta-se na cadeira, e, naturalmente ignora o prestador de serviços, no caso, eu. Mas, quando os sapatos estão prontos e brilhantes, eles abrem a carteira e dão até dez dólares de gorjeta, mesmo eu cobrando um dólar e meio pelo serviço. Deixam o dinheiro ao lado da caixa de polimentos, levantam-se e saem sem uma palavra.
Os lucros são bons e eu me adaptei ao sistema deles.
Certo dia, enquanto eu atravessava a ponte de Manhattan para ir ao Brooklin, no meu carro usado, que aqui vale uma fortuna, enorme e confortável, pensei em comprar arroz e feijão para cozer no meu apartamento. Ah! Foi pensar e deixar que a saudade se sentasse no banco de passageiros ao meu lado. Pensei na vida do interior, onde a minha mãe e dois irmãos moram, e não comprei nem o arroz e nem o feijão. Mandei a saudade se retirar do automóvel.
Passados alguns meses, como era o meu costume, peguei o carro no estacionamento ao final do expediente, passei no aeroporto e comprei as passagens de volta ao Brasil. Enquanto dou aulas reflito sobre esses momentos intensos que me trouxeram dois dias depois ao lugar onde nasci.
Aqui ando de ônibus e não tenho como manter um automóvel, mas como o que eu compro com o sabor que eu espero. Não posso negar que Nova York foi a grande paixão da minha vida.
Nenhum dos alunos supunha que a aula seguinte talvez fosse a pior aula de inglês de todos os tempos. O retrato das torres gêmeas que ocupavam meia parede na sala de entrada ainda estava no lugar. O professor havia avisado que sairia da escola para dar aulas na sua cidade natal a trezentos e cinquenta quilômetros da capital do estado, queria estar ao lado deles nesta hora. Não mais voltaria naquela escola. A direção da escola teve que pagar um pintor para retirar o retrato e lixar a parede antes de pintar com a bandeira americana.
O resto vocês sabem...
13 comentários:
As nossas vivências e experiências marcam-nos para o resto das nossas vidas e mesmo sem querer conseguimos conviver diariamente com cada uma.
O mesmo acontece com as outras recordações e sabores que se mantêm no tempo.
Vai entender um ser humano! Sua origens, suas lembranças, seus hábitos, são fixados em nós e ainda que ao longo da vida venhamos a negá-los tantas vezes, mas são laços eternos. Ele ainda teve coragem de voltar o que lhe dava sabor...lindo texto.
Yayá.
Uma das mais lindas crônicas que você fez .Adorei.Nada como os hábitos adquiridos nas nossas raízes com sabor de comida simples fazendo a diferença com o trauma daquele dia fatídico.
Beijs
As nossas raízes estão sempre cá prendendo-nos à terra...beijo
Parabéns pelo dia da poesia.
Beijo, em divina amizade.
Sonia Guzzi
Belíssima crônica, amei, beijos e boa tarde
As opções de uma vida e como elas nos marcam para sempre!
Um magnífico conto que nos prende do princípio ao fim.
Beijos.
Realidades antagónicas! As experiências são sempre úteis para apreciarmos melhor o que realmente nos satisfaz mais e, não são realmente os bens materiais o mais importante!
Beijos,
Manú
A vida é mesmo engraçada, as vezes procuramos a felicidade tão longe, e sem nos darmos conta, ela se encontra dentro do nosso coração...
Bjos
Minha querida
Pedindo desculpa por não vir agradecer o seu poema lindo, mas o tempo tem sido pouco.
Já comentei lá...obrigada pela pessoa linda que é.
Beijinho com carinho
Sonhadora
Nada como estar em casa, nada se compara a aquele cantinho que consideramos o melhor do mundo.
Adorei o texto.Parabéns.
Bjs no coração Eloah
Viajei na sua cronica, maravilhosa.
As experiência de vida faz muita diferença na nossa caminhada.
Abraço!
.
Fiquei a vida inteira procu-
rando você entre os ami-
gos que seguem o meu blog.
Encontrei todos os que gos-
tam de mim, mas só você não
tive a felicidade de achar.
Beijos,
silvioafonso
.
Postar um comentário