Começava a semana. João chegou à fábrica aborrecido, mandara fazer a retífica do motor e observava que o carro vazava óleo. Na fila para bater o cartão-ponto, ele se queixava para os colegas:
_Peguei o carro no meio da semana passada e percebi o vazamento quando deixei o carro parado em frente ao supermercado, durante o fim de semana.
Sentia-se injuriado ao pensar que teria que voltar ao mecânico para resolver o problema. Iniciou a jornada de trabalho com ar circunspecto. Os operários se concentram em suas atividades.
Um colega traz a novidade:
_Vocês viram na televisão que o ganhador da mega-sena desta semana é daqui. Deu na televisão que o ganhador é de Diadema.
Outro colega diz que gostaria de ter sido ele.
João lembra que não verificou o resultado do sorteio. Foi ao posto de combustíveis, mandou erguer o carro para ver de qual parte do motor vazava o óleo. Chegou a sua casa calculando que deveria ser um vazamento de bucha e que deixaria o carro após conversar pelo telefone com o mecânico e agendar o serviço para que o carro não tivesse que passar mais de um dia parado.
_Alguém sabe quais foram os números sorteados?
Um colega sabia de cor: 01, 10, 20, 32, 49 e 59.
João havia jogado nesses números. O jogo deveria estar no bolso da calça que vestia sob o macacão. Ele vai ao banheiro e verifica. O jogo está com ele. Ele sente-se desnorteado, foi como se tivesse tomado um soco no estômago. Ele pensa no jeito aborrecido que chegou à fábrica. Se ele conta, o trabalho vira festa. Os seus colegas lutam e ele tem como amigos uns quatro ou cinco colegas dentre os duzentos que lá trabalham. Dividir o prêmio não tem cabimento, a casa para a sogra, o estudo dos filhos, o comércio que ele quer estabelecer, são tantas coisas a serem feitas, tantas compras...
Ele está no banheiro há algum tempo e precisa voltar às máquinas, ninguém precisa saber o que se passa. Esse é o seu pior dia na fábrica, um dia no qual a dificuldade de concentração o perturba, ele sua na testa, é nervosismo.
Na hora do almoço um colega repara que ele está diferente.
_É o aborrecimento com o carro, responde João.
É hora de almoço e ninguém sabe que ele está milionário, nem a sua família, nem o banco. Ele próprio não sabe o quanto ganhou. O nervosismo aumenta. Ele quer ir ao banco e não consegue uma desculpa razoável para sair dali. Depois de muito pensar, lembra do colega Juraci que volta e meia toma laxantes.
_Juraci, eu estou constipado há dois dias. Você me cede um dos seus laxantes.
_É para agora.
João toma dois na esperança que possa sair da fábrica. Não demoram dez minutos e ele sente a barriga roncar. Consegue sair do banheiro no final do expediente, completamente extenuado. Finalmente vai para casa. A mulher serve mingau de amido até que o mal estar passe.
_Mulher, estamos ricos. Precisamos ir ao banco em São Paulo. Assim ninguém desconfia. Compre as passagens na rodoviária e vamos embora. Arrume as crianças, as malas, que, de madrugada, partimos.
_E a mamãe?
_Vai junto!
Com essa estratégia, dois dias depois, a cidade inteira soube quem havia ganhado a mega-sena. João aguarda seis meses e volta a Diadema. Monta o seu comércio. Chama os amigos para trabalharem com ele. Ele ficou rico e gerava empregos, a vida de operário ficava no passado. Assumir a sua nova condição implicava em contornar as resistências, um desgaste esperado, não era fácil enriquecer. Agora se sentia obrigado a estudar e o conhecimento doía. Com muita força de vontade vencia a si mesmo. O sonho da loteria não era mais sonho, o ponto de vista era outro, a vida de chefe é difícil na medida em que a responsabilidade sobre o padrão de vida das várias famílias dos seus empregados estava em suas mãos. Mas ele, João, era o mesmo, e duvidava que alguém na cidade soubesse. O dinheiro dele cegava os seus amigos.
A mulher dele o chama para dormir. Ela veste uma camisola de malha de algodão nova e barata. Veste a cama com lençóis floridos e baratos. Uma colcha de supermercado enfeita a cama.
João sorri. Ela era a mesma.
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