Varredura de Camila
Camila levanta cedo e vai trabalhar. O trabalho é de varredora de rua, com o salário ela se vira e paga as despesas do mês. Era recepcionista, mas perdeu o emprego. Quando ela concluiu o curso técnico de secretariado, não tinha a idéia de que os varredores de rua ganhavam um salário maior.
No começo ela cansava muito, mas com as conversas da colega Aurora, o tempo trazia a prática e o condicionamento físico ideais.
Aurora, embora menos instruída, recebeu a nova colega com ares de proteção, com disposição de ajudar a colega.
_Camila, quantos anos você tem?
_Vinte e cinco anos.
_Você tem filhos?
_Não, quero estudar mais antes de ter filhos.
Essa foi a resposta exata para que Aurora falasse de si, como se aconselhasse a outra.
_Camila, eu não estudei, eu vim da roça. Quando eu comecei, não precisei do estudo e do teste para entrar na limpeza. Eu trouxe alguns costumes que me foram retirados. Eu usava vestido por cima das calças e lenço na cabeça para proteger-me do sol. Hoje usamos este uniforme ajeitado, cabelos presos e boné; temos até capa de chuva. Se você ficar aqui por algum tempo, eles mudam você também. Mas mudam por fora, por dentro não muda.
Camila sugeriu que ela contasse da família, perguntando se tinha filhos e Aurora continuou:
_Tenho. Moramos em uma casa de quarto, sala e cozinha. Dividi o quarto em dois com uma cortina. Eu durmo com a minha filha e os meninos dormem do outro lado.
Camila, ouvinte atenta, pensou em amenizar a conversa e disse um chiste, desses que só se permitem entre iguais:
_ E quando as crianças brigam, como é que você faz para acalmar?
_Eles sabem que se brigarem, irão se aborrecer muito mais do que se conversarem. Quem leva a comida para a casa sou eu e eles terão que almoçar juntos e viver sob o mesmo teto. Eles têm que saber que têm mãe e que a mãe deles ficará muito triste se algum deles sair de casa; é muito fácil a criança se perder e arranjar má companhia quando abandona a mãe, mesmo que essa mãe seja como eu, pobre. Comigo eles podem ter futuro e sem mim, o futuro deles sequer existiria.
Assim varriam as ruas, Camila e Aurora conversando.
Aurora tinha quarenta e sete anos e alguma experiência de vida. Informava-se sobre vagas de recepcionista, salário e aguardava o momento propício de dizer o que causava todo esse dó de Camila.
Um dia, um morador jogou fora o jornal do dia anterior na cesta, cansado de notícia ruim. Aurora pegou o jornal. Chegou o dia esperado:
_Camila, hoje eu quero conversar com você. Pegue o jornal e corra para arrumar uma vaga de recepcionista. Eu não sei das suas decepções, mas você consegue mais do que eu. Eu não posso arriscar colocando em risco a comida da mesa, eu não tenho estudo. Você pode. A juventude passa e a disposição também. Você me daria essa alegria?
A moça perguntou se ela tinha feito algo errado e Aurora disse que não havia nada mais triste que jovem sem esperança, sem vontade de crescer, pensando que a vida era do jeito que era. Ela tinha vindo da roça porque havia casado e o marido veio para a cidade, na cidade andou em más companhias e a deixou por outra mulher. Ela tinha vivido da melhor maneira que pode, mas via em Camila uma acomodação, uma vontade não feita, um peso desnecessário carregado por vontade.
Ela varria na Lapa, subúrbio boêmio do Rio de Janeiro. Via todo o público que freqüentava as suas ruas. Gente ruidosa aquela: as moças da noite, de manhã estavam um retrato de ressaca com a maquiagem borrada. Chorou de rir ao ver aquela dama de casaco de peles entreaberto com um botão aberto que mostrava parte da roupa de baixo de renda lilás. Percebia que os boêmios, apesar daquela cor branca amarelada da noite estavam em dia e com o sapato branco, zombeteiros e contando as vantagens que os homens contam em suas rodas de conversas. Muita gente que trabalha passa por lá cedinho, Mães levando crianças para a escola e estudantes adolescentes e estudiosos. Chegava até a fazer anotações comportamentais e analisar o porquê dessas figuras humanas estereotipadas. A Lapa é um clichê, pensava ela dentro do seu macacão de uniforme da empresa.
Ela não acreditou, achou que fosse mais uma piada de carioca, mas à tardinha ela foi comunicada sobre o novo número de caminhão de limpeza no qual embarcaria na semana seguinte para trabalhar.
Passaram-se quinze dias e de repente, como um vento de inverno, ela se sentiu uma excluída da sorte. Aquela gente limpa e elegante agia como se ela não existisse. Quando precisavam de algum favor, dirigiam-lhe a palavra, do contrário a olhavam com hierarquia e outras vezes com pena. A mudança de ambiente era deprimente. Nunca imaginou que houvesse gente com esse comportamento no Rio de Janeiro.
Camila não precisava da pena de ninguém, ganhava o seu dinheiro honestamente e um dia, dependendo da sorte, quem sabe ainda exerceria outras funções. Quatro meses na Barra e sentia o peso do mundo sobre as suas costas.
Precisava de algo para superar as dificuldades emocionais que enfrentava naquele momento.
16 comentários:
Muito bem escrito, Yayá!
Bom dia, querida amiga Yayá.
Adorei o conto.
Tomara que a acomodação não a deixe ficar sem tentar novos horizontes.
Beijos.
Olá, estou visitando seu blog pela primeira vez e parei para ler este texto que me tocou profundamente, pois fala daquilo que todas as sociedades têm:
Aqueles que acham que são superiores, só porque têm (julgam eles) um pouco mais que os outros.
As diferenças não estão no exterior de cada um, mas sim no nosso interior!
Gostei vou continuar a passar!
Um abraço
Qu conto maravilhoso! Os sonhos na berlinda e a invisibilidade que tem certas pessoas quando assumem certas profissões discriminadas. Abraços. Paz e bem.
Como sempre, texto rico, para meditar!!!
Sim, a vida tem disso!
Salario de varredores maior que de secretária!
A Vida sempre parece injusta, mas não, pois há dignidade em todas as oficinas dessa linda vida!
Quem hoje varre, amanhã poderá fazer algo que lhe dê prazer, pois crescer é isso!
Adorei sua exposição aqui da vida de Camila e tomara que ela tenha virado o jogo, deixado a preguiça e acomodação de lado, ouvindo assim o conselho de Aurora!!!
Abraços amiga!
Parabéns!!!
Ivone
Sempre um prazer ler seus textos Yayá.
um abraço
oa.s
Interessante o texto minha amiga...grande beijo de bom dia pra ti.
A sensibilidade de se virar o jogo na hora certa é um nobre acontecimento! Abraço, Célia.
Muito bom minha linda, que existam mais Auroras na vida das pessoas, quando temos a sorte de achar uma pessoa com experiencia de vida e boa para nos aconselhar, com um pouco de fé e coragem conseguimos sim mudar a situação.
A sabedoria não acompanha o dinheiro e a elegância. Em qualquer caminho, encontramos pessoas capazes de nos mostrar um trajeto melhor, ainda que elas mesmas não possam abraçá-lo.
Bjs.
De escritora, sim senhor!
Muito belo, amei o texto, deu vontade de ler e não parar mais, beijos e bom feriado Yayá, beijos carinhosos
Amiga
Vim agradecer o teu mimo. o poema
é o meu grito de desigualdade. Eu sei que quem tem pouco consegue dividir muito mais que aquele que tem muito.
uma reflexão. não umas letras por outras letras.
um beijo e gosto muito de ti porque entendes a minha mensagem
beijos
Yayá,
passando aqui para deixar o link de um selinho que estou compartilhando com as pessoas sempre presentes em meu blog.
http://2.bp.blogspot.com/-kqLk2IJu-jo/TpKSR_LrCmI/AAAAAAAAAV8/rJcylAFFN04/s1600/blog.jpg
beijos
Muito bonito o seu conto. Espero que a Camila tenha seguido o conselho da Aurora. Nem todas as pessoas se podem gabar de ter assim tão boa conselheira.
Beijinhos
Lourdes
lindo texto Yayá..
beijos..
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