O Rei Reinaldo escolheu para o servir na função de valete particular o Horácio, que é um homem de reputação ilibada e considerado honesto até demais para o Reino de Antanhos.
O Conde D’Rondó, Ministro das Armas, ficou descontente com a escolha. Ele preferiria que o rei tivesse como valete um dos seus homens treinados para as eventualidades da segurança pessoal, também capacitados para influenciar e conduzir algumas decisões. Esta escolha poderia ser útil ao Ministério das Armas e à condução do Reino de Antanhos, além de aumentar o seu prestígio pessoal entre os outros ministros do Reino.
Diante da escolha indesejada, o hábil ministro observa os criados do rei, que são o honesto Horácio e a empertigada e simplória Berenice. Resolve apostar em Berenice. Certamente é fácil influenciar a moça e ele contata o guarda-portão do palácio, chamado Ludovico.
Ludovico, um rapaz de postura correta, ombros eretos, simpatia adequada às necessidades dos nobres, de repente, passa a tratar Berenice com uma maneira cortês, reservada aos nobres e não aos criados do palácio. Ele elogia o uniforme dela como se fosse um traje de passeio e começa uma conversa.
_ O rei mantém os criados mais aptos ao lado dele. Você me diria quais são as qualidades tão apreciadas por vossa majestade?
Ela o olha surpresa, sem entender nada com coisa nenhuma, mas responde.
_Eu nem de longe sei o porquê dele ter me escolhido. Eu entrei no palácio aos dezesseis anos para ser auxiliar de cozinha. Fiquei três meses lá. Quando a camareira Ema teve bebê, a chefe das camareiras me chamou para a substituir. Eu arrumei os quartos de vários nobres. Quando a Ema terminou o período de resguardo e voltou ao trabalho, eu voltaria para a cozinha, mas o rei interveio e ordenou que eu fosse a arrumadeira do quarto dele. Recebi a educação das damas de companhia e faz dois anos que me dedico com todo o empenho ao manter o aposento de sua majestade impecável.
Para não mostrar a intenção segunda da conversa, ele despista com outra pergunta.
_ E você, Berenice? Fale-me de você para me deixar adivinhar as suas qualidades.
_ Eu sou filha dos floristas que atendem os pedidos do palácio. Estudei pouco. Ah, o estudo foi feito para os nobres, não tenho jeito com isso. Eu quis trabalhar e aqui estou. Significa que estou certa no jeito que eu penso.
Berenice era uma moça de vinte e um anos, vestida com as roupas das criadas da corte, o que a deixava escondida tanto na provável beleza da idade quanto nas imperfeições. Não era feia e não era bonita perante o Reino de Antanhos. Visitava semanalmente a região onde moravam os súditos, os comerciantes e alguns empregados do reino. Quem se importava com as suas visitas na região era Laércio. Ele a admirava e não se aproximava porque ela trabalhava ao lado do rei. Ele tinha medo. E se o rei não gostasse dele?
Laércio usava do expediente dos gracejos para que ela o notasse. Se ela gostasse dele, que importância teria o rei na vida deles?
_O rei e o reino roubaram a Berenice de quem a ama! Ela nunca foi jovem, apenas aprendeu um comportamento inaceitável para a boa convivência na sua região, no seu berço. A arrogância da Berenice não pertence a ela, pertence aos nobres.
A moça não perdia a oportunidade de ouvir tais comentários. Passava em frente à casa do Laércio somente para provocá-lo.
Enquanto isso, nas conversas frequentes entre Berenice e Ludovico, este descobriu que Horácio, o valete, pela manhã separava as roupas para o rei vestir durante as suas atividades do dia, verificava os sais aromáticos do banho e a temperatura adequada da água na banheira de madeira chinesa. Enquanto o rei se banhava, ele provava o desjejum para se certificar que estava sem elementos químicos estranhos e do agrado de sua majestade. Em seguida lia a agenda e os compromissos do dia. Acompanhava o rei quando solicitado e também secretariava as reuniões reais. Horácio não perdia a compostura em momento algum, além de honesto, era culto e não usava o seu conhecimento para interferir na vida de sua majestade. Todas as informações seguiam para o Ministro das Armas, Conde D’Rondó.
O ministro, ao conhecer as informações, chama o rei de estúpido, o valete de parvo e, se contém ao falar da moça, para que as informações não façam o caminho da volta. E, se Berenice for íntima do rei?
Berenice sabia do respeito com o qual o rei a tratava. Ela trabalhava contente e deixava a sua família contente ao comentar o respeitoso tratamento recebido no quarto do rei, mesmo na ausência do valete.
Chega o dia de reunião mensal entre o rei e os seus ministros, reunião especial onde são resolvidos o direcionamento e a política do Reino. O Conde D’Rondó estava presente ao encontro. É hora do Ministro das Armas se pronunciar sobre o reinado
_Vossa Majestade, em primeiro lugar eu vos desejo e ao vosso valete uma vida longa e saudável. Ele passa bem porque a segurança na cozinha verifica toda a sua comida, majestade. Se algum dos meus homens falhar, o valete é uma vítima do Vosso Reinado. É difícil para um ministro experiente em armas, como eu, se modestamente puder me dirigir à sua majestade, saber que Vossa Majestade tem um parvo a morrer quando poderia ter uma condor para guiá-lo pelos melhores e aconselháveis caminhos. Os meus homens não se deixam abater. Se morrem, morrem pelo Reino de Antanhos.
O Rei Reinaldo olha para o seu ministro, o conde D’Rondó, com austeridade e diz:
_Digníssimo Ministro das Armas: cabe à sua colocação neste reino de Antanhos: a segurança do Reino e a vida sem riscos de Sua Majestade, no caso Reinaldo de Antanhos III. Com o respeito que vossa excelência merece, a guarda Real não precisa proteger ou interferir no banho do rei. Nos relatórios de segurança dos lacaios reais, elaborado e vindo do seu ministério, constam que Horácio é um homem sensível às letras, honesto, casado e sem filhos. É o que me basta para uma escolha pessoal. Escolha pessoal, nada que prejudique o meu amado Reino de Antanhos, ou o deixe em perigo ou em mãos inconsequentes.
Os demais ministros sorriem e o Conde d’Rondó sai com os olhos de fogo daquela reunião ministerial. Decide retaliar a Berenice e colocar uma camareira da sua confiança nos aposentos do rei Reinaldo.
Rapidamente Berenice recebe apelidos entre os nobres, a “belezinha do reino”, a “filhinha do reino”, a “jardineira inteligente” e assim por diante. Os apelidos geram boatos que correm dentro do castelo.
O rei sente que se os comentários persistirem, ele perderá a sua camareira de confiança e comenta com o Horácio a situação.
_ Vossa majestade me permita fazer uma sugestão. Eu até hoje não interferi em nenhuma das suas ordens. Sinto, porém, que uma injustiça é cometida dentro deste local. Contra a injustiça, a prudência é mãe e a atitude é pai. Berenice pode arrumar o quarto em que vivo com a minha esposa. Assim, enquanto os comentários são combatidos, a moça trabalha em um bom local e cheio de livros, os quais precisam que alguém os livre da poeira que entra pelas janelas. Aproveito a ocasião para pedir a sua permissão para procurar um valete para me auxiliar nas tarefas. Eu confiava na Berenice limpando este quarto. Sem ela, preciso de um criado da minha confiança, alguém com quem contar.
_Prezado valete Horácio. A permissão vos é concedida contanto que o vosso auxiliar não seja indicado por nenhum nobre.
O rei entra no quarto para trocar de roupas e o valete Horácio conclui: _Se o rei me encontrou, também eu encontrarei um auxiliar digno e honesto, embora tenha a impressão de que a isenção de ânimos e partidos foi um dom concedido pela Graça Divina a mim e à Berenice.
“A fofoca é um meio corrente para que a corte saiba o que de fato se passa com o intuito de preservar os nobres nos seus postos e cada serviçal fiel ao seu senhor”, raciocina o valete.
Ele e a esposa ficam contentes com os serviços prestados pela nova camareira dos seus aposentos. Horácio, com curiosidade, pergunta se ela conhece algum homem honesto para ser o seu auxiliar.
_ Conheço o Laércio, que é zombeteiro como só ele sabe ser. Ele não tem a educação necessária para o palácio. É honesto, bonito e trabalhador. É o meu bravo valete senhor.
Horácio pede à Berenice que chame Laércio para vir ao palácio.
Ela avisa Laércio. Ele sente que a grande chance da sua vida chegou. “Roubarei a minha roubada criada para que me acompanhe nos passeios matinais”, é assim que ele pensa. Honesto, simples e romântico. Vai absorto e feliz ao palácio em busca do valete que lhe deu a chance.
O moço fica bem apanhado com as roupas do reino. Horácio simpatiza com ele.
O rei determina um rodízio de camareiras para cuidar dos seus aposentos. O valete Laércio observa qual o objeto do quarto mais limpo a cada dia. Passa um mês e o rei determina que o rapaz comente as suas observações com as camareiras.
Na segunda-feira seguinte Laércio diz à camareira que “a senhora que limpa os aposentos aos domingos é a que melhor tira o pó dos retratos”. Na terça-feira ele observa que “a camareira que vem aos sábados é a que deixa os lençóis mais esticados”. Semana após semana, ele conta as suas observações às camareiras. Elas se irritam e começam a comentar as impertinências do valete.
As camareiras não podem comentar sobre os valetes, elas criam um grande constrangimento para os nobres, todos tem entre os seus criados camareiras e valetes. “Os comentários devem surgir na corte”, pensam os nobres.
Os nobres pressionam o valete Horácio, atual comandante da Berenice, que peça ao rei que a Berenice volte a cuidar dos seus aposentos. Desta maneira, eles se sentiriam mais à vontade para lidar com os seus criados.
Com tantos comentários envolvendo camareiras e valetes, o Conde D’Rondó percebe que o seu ministério não é sua propriedade e manda que se calem os comentários sobre a Berenice.
Desta maneira Berenice volta a prestar serviços ao rei. O valete Laércio continua a aprender o ofício de valete junto a Horácio. Ele está para vencer a sua conquista.
O rei e o Horácio percebem o que se passa entre aqueles dois. Agora, a cada livro que Laércio lê, é ordenado a levar a Berenice ao bosque da região dos empregados para que ela aprenda a vida sob o ponto de vista dele, sem grandes preocupações com as formalidades. Agora, a cada livro que a Berenice lê, recebe a ordem de fazer alguns bolos e pães salgados, iguais aos que são servidos na corte, para levar aos passeios no bosque.
Laércio se transforma num valete digno. Berenice é senhora de si, sabe se comandar sem a aprovação dos nobres.
Laércio e Berenice, um lindo casal, felizes para quando a nobreza permite, ou seja, de vez em quando. Nesse reino a felicidade não é para sempre. Eles têm os seus momentos de alegria e até felicidade mesmo. Apenas momentos e enfim, o FIM.
Um comentário:
Adorei o conto. Parabéns pela imaginação fértil e criativa.
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