Sobre a Não Escolha

Nem tudo o que acontece na vida das pessoas se origina numa escolha pessoal, seria óbvio refletir que nenhum bebê escolhe a cidade onde irá nascer, mas a não escolha passa por outros aspectos mais complexos, e os quais exponho a seguir.
Agora vejamos ninguém escolhe as doenças que têm, desde as mais corriqueiras como o resfriado até as mais difíceis e doloridas, que todos sabemos da existência.
O que eu discuto, em pensamento, é a alteração de comportamento e de mentalidade que se origina a partir deste evento. São rotinas e conhecimentos novos que para serem cumpridos temos que abdicar de outras rotinas anteriores e de pensamentos arraigados, muitas vezes preconceituosos. Nada mais ridículo do que um bicho de pé ou mais nojento do que berne e, quantos cidadãos já passaram por algumas dessas situações, mesmo seguindo normas de higiene rigorosas. Depois fica a história de que era um dia de chuva, os pés se molharam em água de rua e, passados quinze dias, a surpresa desagradável aparece. No dia do tratamento, o descanso é obrigatório porque o desconforto faz parte do processo da cura. E nesse dia sem fazer nada pega um livro qualquer que está jogado em um canto da casa porque foi comprado, mas ninguém sequer abriu o apêndice para ler. Apêndice e apendicite tem a mesma morfologia.
A ler o livro, velhas questões pessoais são relembradas e resolvidas a partir dessa leitura. No dia seguinte, o cidadão elimina as prestações da casa própria vendendo um terreno que era seu, mas ele não tinha como fazer melhorias para aplainar a terra e construir a residência dos seus sonhos. No dia seguinte, ele conversa com o chefe e consegue a sonhada transferência para a agência bancária que fica próxima a casa dele, o que permite que ele almoce em casa e coma fruta de sobremesa. No dia seguinte ele, sem dívidas, permite que a mulher remodele o quarto do casal e nove meses depois o filho caçula se transforma em filho do meio.
Um ano depois, enquanto acorda de madrugada para acompanhar a mulher a dar de mamar enquanto ele faz um café e senta-se no sofá para esperar a mulher embalar o sono do filho, ele se lembra do dia da chuva. Foi o dia da transformação radical da sua vida, da mentalidade e da maneira de viver e enfrentar o cotidiano dali para frente.
Ele não escolheu a chuva, chuva não se escolhe, mas o filho foi bem vindo e ele está feliz. Cansado e com preguiça lembra-se do que era a sua vida antes dela. Eram trinta e oito minutos até chegar ao trabalho, almoçava no restaurante ao lado a comida caseira preparada pelo dono do restaurante, à noite preocupava-se com a tabela de financiamento, assistia o jornal na televisão e se deitava porque o dia seguinte exigiria que acordasse cedo. A mulher, igualmente, mas retocava o esmalte das unhas das mãos além de garantir a boa apresentação lavando os cabelos e fazendo uma escova simples para assentar os fios mais rebeldes. Agora, o bebê ficava com a sogra pela manhã e a sua mãe à tarde e os filhos mais velhos ficavam na creche.
Aquele livro não foi escolhido a não ser para passar o tempo do dia de molho com os pés erguidos sobre a almofada cuidadosamente colocada sobre a banqueta da cozinha em frente ao sofá. Não leu nenhum outro livro dali em diante, não gostava de ler e continuava não gostando.
A mulher aparece na sala e faz sinal de silêncio porque o bebê ressona em seus braços. É de madrugada e logo terão que acordar e sair. Bendita chuva, bendito bicho de pé, não houve escolha até o ponto de ônibus.