Rio de Janeiro

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O blog da Nina, menina que lia quadrinhos.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Dedicado à minha mãe: Memórias de Dona Sinhá.

bruxas

                Memórias de Dona Sinhá.

Dona Sinhá é uma senhora já idosa e mora com uma a filha caçula na cidade de São Paulo. Aos oitenta anos e com alguns problemas de saúde precisa de companhia. Ela gosta de contar histórias a todas as pessoas que fazem companhia a ela.

A filha a ouve com atenção tentando separar o que é verdade daquilo que é da idade. Dona Sinhá não se cansa de falar da juventude, mas ultimamente conta muito da infância, do pai, da mãe, da época dos anos 40.

_Filha, o seu avô era funcionário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos na era Vargas, que era também a época da Segunda Guerra Mundial. O seu avô foi transferido para uma pequena cidade no sul do país. O nome da cidade ela não queria lembrar e não contava a ninguém. Era uma cidade pequena e moderna para a época e tinha até cinema, ela dizia. Papai gostou do cinema e assistíamos as notícias antes do filme começar. Eu e minha irmã víamos as notícias da guerra e da capital do país, o Rio de Janeiro. O jornal antes do filme durava meia hora e causava desespero para nós duas.

A filha senta-se ao lado da mãe e deixa que ela conte a sua história.

_ No sul do Brasil as cidades, em sua grande maioria eram habitadas por imigrantes de diversas etnias, muitos fugidos da guerra. O governo Vargas cuidava para que as diversas etnias convivessem em paz nos tempos da guerra. Uma época conturbada com a coluna Prestes, os integralistas de Plínio Salgado e, o medo do racionamento. Eu digo com orgulho que papai nunca violou uma correspondência. Papai foi um homem boníssimo, mamãe, uma exímia pianista. O prefeito da cidade era adepto de Carlos Lacerda. O delegado era amigo dos donos de cassinos. O jogo corria solto. Papai nos proibia de falar em política.

A filha pede à mãe que continue. A mãe não se faz de rogada e continua o assunto:

_Uma vez, houve uma peça de teatro da escola onde nós não estudávamos. Eu e a minha irmã soubemos no dia seguinte que papai havia assistido à peça e, quando fomos à escola, as nossas colegas nos contaram. Protestamos junto à mamãe. Mamãe pediu que o papai nos levasse assistir a peça. Ele nos levou. Estava contrariado. Lembro que ele segurava as nossas mãos com desânimo e no rosto dele havia um semblante triste.

A filha, querendo animar a conversa, perguntou se ela tinha gostado da peça de teatro.

_Não gostei. A bruxa era má. Disse isso e, caiu em prantos.

A filha pede desculpas à mãe e pergunta o motivo de tanto choro.

_A bruxa era muito má minha filha. A peça teve um final ruim. A bruxa não amava ninguém. Era um teatro de fantoches com uma bruxa, uma boneca de porcelana chinesa, um homem e uma mulher e vários meninos e meninas. A bruxa deixava a moça e o moço isolados, até que um precisasse da ajuda do outro. Eles acabavam casando. A bruxa ria. O primeiro ato acabou. No segundo ato, a bruxa colocou a boneca sob o seu comando interferindo nas tomadas de decisão de um casal casado há muito tempo. As intrigas e os mal entendidos entre o casal cresciam e eles se separavam. A bruxa riu de novo. O segundo ato acabou. Eu odiei a bruxa porque o papai e mamãe viviam bem e eu não queria nenhuma boneca separando eles.

Os olhos da filha de dona Sinhá ficaram marejados de lágrimas. A idosa lembra o teatro e não se deixa interromper.

_No terceiro ato, a bruxa fez um menino aceitar um saco de dinheiro.

A filha, surpresa, pede que a mãe conte o terceiro ato.

_O menino era bom e honesto. Não aceitava dinheiro de estranhos assim como a mamãe nos ensinou. A bruxa pediu aos amigos dele que o fizesse aceitar o saco de dinheiro. O menino disse aos amigos que não. A bruxa ensinou um truque aos amigos dele e disse que era para o bem do amigo. Eles fizeram uma roda e quando o menino passou, os amigos o fizeram rodar como um pião até que ele ficou tonto e caiu. Enquanto o menino se recuperava da tontura com os olhos fechados, os amigos colocaram o saco de dinheiro nos braços dele e saíram correndo. Quando o menino melhora, ele percebe o saco de dinheiro nos seus braços. O menino pega o dinheiro e o dá para a cidade. Ele não ficou com o dinheiro que não era dele. Estava visivelmente machucado. A bruxa riu bastante aquela risada malévola típica de bruxa.

A filha ouve e se revolta. Era inaceitável que as crianças tivessem sido expostas a isso.

_ “Que cidade lamentável”, disse a filha.

Dona Sinhá, alheia ao que a filha dizia, prosseguiu:

_Voltamos para casa, tristes. Foram tantas as maldades da bruxa. Mamãe nos proibiu de voltar àquele teatro. Papai pediu que mamãe o proibisse também e ela assim o fez.

Dona Sinhá estava com vontade de falar e terminou a sua história:

_Mamãe era um doce e papai, um bom funcionário público. A cidade tinha escolas boas, sorveterias, cinema e clube, ouvíamos a rádio todas as noites, depois do blecaute. Um dia, porém, papai não se aguentou e se exaltou com um homem que ele encontrou na saída do cinema. O homem dizia que ali nasceria um novo país, um país moderno feito por gente estrangeira. Papai ficou vermelho e disse ao homem que ele era um covarde e um traidor da pátria dele. A nacionalidade dele não te interessa. Digo o que uma mãe deve dizer. Mandou o homem para a guerra e disse para que ele não mais tentasse o cooptar para ajudar um país estrangeiro. Naquele dia o papai nos levou para casa discursando sobre o Brasil. Os moradores do Brasil eram brasileiros e não importava a cor, a raça, ou a origem de nacionalidade. Falou contra os extremistas, pediu que nunca aderíssemos a essas coisas. Foi uma das poucas vezes que vi o papai assim, angustiado com a realidade. Ela não esquecia a frase do pai:

     _A gente agradece ao país que dá o nosso sustento.

Dona Sinhá pede um copo com água. A sua boca está seca de tanto contar história.

A filha sorri do esquecimento de ambas. Quando ela voltou com a água, pareceu a ela que a sua mãe mudava de assunto. A Dona Sinhá toma um gole e pede para que a filha estude.

_Filha, se houver outra guerra, esteja ao lado dos brasileiros. Porém, se houver outra ditadura, não confie em ninguém. Éramos todos unidos, a cidade perfeita, mas à custa da ideologia do medo. Eu não quero isso para você.

A filha beija o rosto da mãe com carinho e depois agradece por morar em São Paulo, apesar de todos os problemas que existem lá.

Um comentário:

Solange Gomes disse...

LINDO... muito Lindo esse momento de amor entre a filha e a mãe de 80 anos que reside numa cidade tão agitada como São Paulo, mas que faz a felicidade da filha.

Sua criação é,surpreendentemente, bela e duvidosa. Pois, como leitora não sei se o fato é verídico ou fruto da imaginação da autora.

Bjns.

Solange.