Rio de Janeiro

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O blog da Nina, menina que lia quadrinhos.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Conto publicado em coletânea: Quarta-feira de Cinzas

Quarta-feira de Cinzas. Urânia acordou ao meio dia da quarta-feira de cinzas tentando lembrar o que aconteceu naquela semana de festas momescas. Pensava em voz alta: _Deixe-me ver se lembro, eu pensei que tinha treze anos e beijei todos que quiseram me beijar, ou, eu achei que era uma freira de minissaia e queria comprar uma saia preta longa a qualquer custo e ninguém me vendeu, ou me perdi nas ruas de Salvador e chorei chamando a minha mãe, que já morreu, e abracei a vendedora de cocadas achando que ela estava com o seu espírito incorporado em forma de cocada com leite condensado, ou, o que é pior, tudo isso em quatro dias. Na minha cabeça tem um surdo e um agogô a todo o vapor. Aqui é a Bahia, acho que tudo pode acontecer. Olhou para o lado da cama, no hotel, e viu o abadá colorido. Tinha até domingo para voltar ao normal e seguir viagem para São Paulo. Sabia que cometera excessos. Era a primeira vez que viajava sozinha e sentiu-se livre para fazer tudo o que pudesse. O único problema foi a ressaca, aquele mal-estar, o dorme e acorda e volta a dormir com o estômago parecendo uma máquina de lavar roupas. Precisava ficar só há algum tempo, mas sempre havia alguém por perto. Parecia que era proibido pensar, fosse para reler as suas conclusões sobre o passado ou fosse para planejar o futuro. Eram os colegas de trabalho, os vizinhos, os conhecidos. Gente que falava o tempo todo e deixava o seu ouvido zunindo. Ela dizia que precisava se isolar e a torcida do time do São Paulo que estava a sua volta dizia que não. A pressão psicológica de São Paulo, aquele movimento, as ruas superlotadas de gente, a demora para chegar ao trabalho, a poluição; os amantes, que se oferecem e que em geral são recusados, em cada esquina; o horário apertado, o almoço apressado, tudo parece problema. Foram três anos nessa vida agitada e sem possibilidade de mudança. Nesse ano ela se decidiu a ir passar o carnaval em Salvador, comprou o abadá antecipadamente na agência de viagens no mesmo dia em que comprou o pacote turístico de carnaval. Ofereceram um coquetel para os turistas antes da folia. Ela veio mal de São Paulo e queria extravasar, sem medidas, esquecer a cidade que faz dos homens uma máquina, que respeita o senhor dinheiro como um deus. Tinha que melhorar antes de parar para pensar. Daquele jeito não dava. A cabeça voltava a incomodar e o estômago melhorava aos poucos. Estava só e era bom estar só numa hora dessas. Toca o interfone no quarto, é a recepção do hotel perguntando se ela gostaria de aproveitar a estadia e conhecer algumas praias e cidades próximas ou fazer um passeio de barco, são passeios baratos e ela ocupa os outros dias da estadia em Salvador antes de domingo, quando acaba a excursão, com isso. Ela aceitou, escolheu um passeio pelas praias, um almoço típico da região com visitas a igrejas e um passeio de barco. Apenas pediu para a recepção do hotel que aguardasse a hora do jantar para pagar o roteiro que escolheu. Ela desceria e acertaria as contas desse pacote extra. À noite, desceu e conversou com a Dalva. Moça calma e alegre que brincou com a Urânia: _Aqui na Bahia, nós temos o “cura ressaca”. Você se acabou na festa e agora tem que se recompor, manter a distinção. Se eu morasse em São Paulo, eu vinha para cá de mudança. Virgem Santa, o que são aqueles homens que querem gozar com dinheiro no bolso? Aquilo não é gozar, aquilo é sadomasoquismo. Nenhum ser humano goza porque tem dinheiro no bolso, ele goza quando ele não tem nenhum bolso para guardar o dinheiro. Guardei um litro de água de coco para você. Substitua o coquetel pela água, acrescente um dendê e um leite de coco na refeição e sinta a baianidade entrar no seu corpo. Urânia sorriu, pagou e foi jantar no saguão do hotel. Bacalhau à baiana e arroz com leite de coco, depois para completar mugunzá de cortar para a sobremesa. Foi se deitar duas horas após a refeição e dormiu feito criança. Acordou sem pressa para nada, a festa acabou, era hora de passear. Entrou no ônibus do hotel, sentou-se na terceira fila, recostou a cabeça e olhou a paisagem pela janela. Coqueiros, praias paradisíacas, sossego de espírito. Estava como queria após três anos intermináveis de correria. Voltará para São Paulo no domingo. O tempo passa vagarosamente enquanto caminha na areia do Farol da Barra. Ela não quer mais extravasar daquele jeito feio, mas que brincar com a areia e faz um castelo de areia. Não se pode viver num castelo de areia, mas sempre se leva um pouquinho da areia do castelo para dentro da sua casa, o seu mundo particular. É o que compensa a viagem é essa construção de nada. O povo parece não ter pressa, quer sentir o cansaço da festa devagar, no ano que vem tem mais. Ela queria ser assim, mas em São Paulo é impossível. Por outro lado, ela decide que vai procurar um emprego num local próximo do local onde mora, ou, muda de casa para morar perto do emprego. Na sexta-feira se sente descansada e já pensa na viagem de volta. Verifica a arrumação da mala. Percebe que chegou esgotada à cidade e agora se sente melhor. Entra em silêncio no hotel. A recepcionista pergunta se ela gostou da visita à Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e ela responde que sim e que até aproveitou a visita para pedir uma vida mais calma, com menos correria. No domingo volta para casa, em São Paulo, disposta a mudar. Desfaz as malas e olha a sua lista de contatos. Examina minuciosamente quem ela quer que continue na lista e quem ela quer que saia da lista. Ela lembra de uma notícia que leu no jornal de relance quando o ônibus parou em frente daquela loja de artesanatos, na Bahia, um homem havia sido internado em um hospital e acusava o vizinho como o causador do seu estresse e a família do homem deu queixa em uma delegacia pelo crime de assédio moral e estava feita a confusão porque assédio moral é típico de ambiente de trabalho. Aquela moça que morava no 1705, a Sílvia, sua vizinha, tinha atitudes que lembrava a notícia lida. A Sílvia a tratava muito bem e coincidentemente se encontrava com ela todas as vezes que ela entrava no elevador. Urânia anotava os preços de supermercados e fazia tabelas dos preços mais baratos praticados pelos supermercados. Por algum motivo desconhecido seu, pensou na vizinha com outros olhos e sentiu um arrepio. Na segunda-feira após o carnaval, ela volta ao trabalho. Encontra a Sílvia no elevador, antes de sair para pegar o metrô e ela diz que as duas precisam conversar mais tarde. No fim do dia, quando chega em casa, Urânia diz a Sílvia que dê uma passada lá. Recebe a vizinha na porta e não a convida para entrar. Sílvia conta o motivo da sua visita: _Urânia veja as fotos que me mandaram pelo celular. Nas quatro primeiras você está beijando na boca homens desconhecidos, nas outras você é retirada de uma loja com uma saia preta comprida e dançando pelas ruas de Salvador, e esta aqui mostra você pedindo a benção de joelhos para uma cocada. Você se embriagou na viagem. Urânia a interrompe e pergunta quem mandou as fotos para ela. _Não faço ideia. Não conheço os números de telefone que enviaram as fotos. Perceba o que quero dizer, querida, se estas fotos chegarem ao prédio, você será prejudicada. Eu estou querendo te ajudar. O que você quer que eu faça com as fotos? _Sílvia, onde você quer chegar? _Bem, a síndica precisa de uma auxiliar e ninguém quer entrar no conselho fiscal. Eu tenho vontade de ajudar, mas não posso. Eu não entendo de contas. Você pode. A questão é simples, você entra para o conselho fiscal. _Esse problema é da síndica, o conselho fiscal é eleito e, nem eu e nem você devemos nos meter com isso. Você é nutricionista, não é contadora. _E você, Urânia, uma economista que se embriaga no carnaval. Urânia disse que não iria cooperar com aquilo, mesmo conhecendo a situação, não tinha tempo, corria os supermercados o dia inteiro para fazer a coleta de preços. A síndica, Juraci, morava no terceiro andar do edifício em que morava, no bairro de Pinheiros. As fotos apareceram não somente nos celulares dos colegas, mas nos celulares dos vizinhos que ficaram estupefatos com a atitude da engenheira no carnaval. Com o nome na berlinda, diversos boatos novos surgiam a cada dia a seu respeito. Dentre eles, o porteiro que jurou que ela o convidou para sair à noite, mas ele recusou. Algumas senhoras encontraram com ela no elevador e deram o conselho para que ela tomasse banho de água fria que ela se sentiria melhor. No escritório, ouviu um dos funcionários comentar que isso era briga de cachorro grande e não era para eles. O supervisor a chama e pergunta o que está acontecendo. _Eu fui pular o carnaval em Salvador e aprontei um pouco, depois que eu bebi além da conta. Eu poderia ter dançado e brincado com os outros sem beber. Eu fiz coisas que não devia. Eu não deveria ter tomado nada. A ressaca foi horrível, você não imagina. Ele a conhece e sabe como foram os últimos três anos. Ele bem que avisou para ela não levar trabalho para casa, mas não adiantou. Ganhar um salário dobrado com horas extras é bom, desde que não prejudique a saúde. Ele a acalmou e disse que ela não perderia o emprego por aquele motivo. E disse para ela não beber para descontrair. _Se soubesse a imagem deplorável que as mulheres com um copo na mão passam aos outros, não tomaria nenhuma bebida alcoólica pelo resto da sua vida. Com o tempo os boatos cessam. Esqueça. Os boatos não cessaram. O ambiente piorou. A síndica mandava fazer vistorias desnecessárias no seu apartamento. A Sílvia propôs fazer um abaixo-assinado para retirar a Urânia do edifício, mas parte dos moradores não concordou. Um dia, Urânia não suportando mais os comentários foi à reunião de condomínio. Houve a reunião, um morador beliscou-lhe as nádegas, uma moradora sugeriu que ela assumisse a vida fácil, o outro convidou-a para uma taça de vinho e uma outra disse que não falava com loucos. Urânia pediu a palavra e contou das fotografias que apareceram no telefone celular da Sílvia. Disse também que não gostava de reuniões de condomínio e estava lá somente para falar desse problema que a incomodava muito. Os condôminos se entreolharam, alguns cochicharam aos ouvidos dos outros moradores palavras ininteligíveis e outros calaram em respeito para com ela. A síndica sorria. Ao final da reunião, Juraci pede que Sílvia a aguarde que ela precisa lhe falar. Urânia foi para casa dormir. No dia seguinte, quando novamente ela pega o elevador, encontra a síndica Juraci e a Sílvia juntas. Cumprimenta as duas e se dirige à porta. A síndica a segura pelo braço e diz: _Espere um pouco, Urânia. Eu preciso lhe informar que quem manda aqui dentro sou eu. Não quer trabalhar no condomínio? Não tem importância. Procure um outro local para morar. Eu não posso obrigá-la, mas posso avisar que a sua vida ficará difícil. Ninguém gosta de você aqui. Eu não deixarei que os moradores gostem de você e é melhor que se mude para um local onde eu não conheça o síndico. Nós, os síndicos, somos os cães de guarda dos edifícios e aqueles que são como eu, e somos em um número razoável, sabemos minuciosamente do lixo de cada morador. Uma amiga minha que mora em Salvador achou graça do estado caótico de uma foliona, tirou fotos e mandou-as para mim. Os síndicos são bons quando querem, entendeu? Você mora sozinha, seus parentes moram longe, não me pergunte como eu sei, eu sei. Se você quiser se comportar pela minha cartilha e ser minha conselheira fiscal, eu serei sua amiga. Caso contrário, é melhor se mudar para um edifício onde eu não tenha contatos, o que será difícil. Que o seu dia de coletora de preços seja bom. Urânia não responde. Entra no metrô sentindo a angústia de quem quer desabar em lágrimas e não o faz porque não chora em público. Na empresa consultora de preços ela conta o que aconteceu a alguns colegas e ao supervisor e eles a mandam para um hotel. _Não trabalhe hoje. Fique no hotel até arranjar um lugar melhor para morar. Contate as imobiliárias. Saia de lá. A gente ajuda na mudança. Urânia teve que se mudar. Vendeu o apartamento que era dela um ano após a mudança. Comprou outro no bairro Itaim Bibi. No carnaval do ano seguinte voltou à Salvador. Comprou o abadá, não bebeu e aprontou tudo de novo. Volta para São Paulo. Ninguém a incomoda. Pode ser feliz de novo.

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