Rio de Janeiro

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O blog da Nina, menina que lia quadrinhos.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Arapuca é o tema deste conto publicado em coletânea.

Arapuca. Estava triste e resolvi sair com uma amiga para me distrair. Ela me contou dos últimos anos da sua vida. Foi um exemplo para a minha tristeza que não tinha tanta razão para me acompanhar. Quando a Joana perdeu a mãe, dois anos após perder o pai, ela se sentiu muito só, abandonada pelo destino. Estava desempregada e as pessoas mais próximas ao invés de trazerem conforto, fugiam dela com medo que ela quisesse dinheiro emprestado. Ela não precisava de dinheiro, tinha feito uma poupança que lhe garantia pelo menos uns dois anos para procurar um emprego do mesmo nível ao que possuía anteriormente. A carência do pai e da mãe, o desemprego e o abandono juntos e ao mesmo tempo fizeram com que ela adquirisse a síndrome de pânico após seis meses nessa situação. Ela se sentava no sofá e pensava que se saísse de casa iria morrer na esquina. Duas quadras equivaliam a uma caminhada em volta do próprio túmulo. Contudo voltava para casa e no silêncio do ambiente o medo da morte a apavorava. Após um ano nesse sofrimento ela conseguiu um emprego. Acabou o problema de viver economizando pensando no feijão com arroz do dia seguinte. Era para estar otimista, mas o medo da morte, a sensação de que algo grave aconteceria a qualquer momento aterrorizavam as suas noites de sono. Dois meses no novo emprego e ela foi ao departamento de pessoal pedir auxílio para o seu problema. Foi ao psicoterapeuta. Depois da consulta ele recomendou que ela fizesse caminhadas e se afastasse definitivamente daqueles que a abandonaram. Joana se matriculou em uma academia de ginástica perto da sua casa. O medo era tanto que ela se agarrava nas laterais da esteira e andava como uma acidentada em recuperação, passo a passo, devagar, sentindo todos os músculos acionados e tensos dentro do seu organismo. Um colega de academia que presenciava a cena a convidou para ir à Piracicaba no fim de semana. Ela aceitou, mas foi de ônibus porque os motoristas de ônibus tinham mais prática do que os motoristas de carro. Joana agradeceu a bondade do João Carlos e da Clarice, esposa dele. Eles conversavam com ela, procuravam saber um pouco da sua personalidade. Perceberam que ela sofria. Sem filhos para cuidar, cuidaram da Joana. Tinham todos a mesma idade. A amizade se estreitava na medida da solidão de Joana, que não dava o braço a torcer, não mostrava que não tinha ninguém na sua vida. Era fechada e não se abria para conversar. O casal sentiu a solidão em que ela vivia quando observaram a rotina da moça fora do escritório. No dia em que ela arrancou um dente, eles deram uma passada no apartamento dela e viram sobre a mesa a sopa de supermercado pronta e fria em cima da mesa. Um prato, uma colher, um copo, um guardanapo e um pão macio sobre a mesa. Ela estava assistindo televisão. Não estava tensa. Caminhava normalmente dentro do apartamento. Estava sem dente, mas estava calma. Disse que no dia seguinte tudo estaria bem. Nesse dia ela percebeu que estava melhor. O telefone tocou. Joana atendeu e disse que já tinha marcado cinema para aquela noite e que receberia as visitas em outro dia. Clarice perguntou o porquê da mentira ao telefone. Joana contou que a mágoa criada no ano mais difícil da sua vida havia deixado cicatrizes na alma. Disse que não queria retornar a abrir as feridas já cicatrizadas. Disse também que esse medo era um medo bom. Era um medo de defesa pessoal. Aprendia a se defender sozinha. Joana sentiu que o casal procurou mostrar a ela o mundo no qual viviam. Não havia unicamente pessoas buscando a saúde na academia. Alguns procuravam doenças e tomavam anabolizantes. Outros procuravam a política e freqüentavam o local apenas para se relacionarem com pessoas importantes que também faziam a sua caminhada três vezes por semana. Algumas pessoas procuravam Joana para falar dos parentes dela, mas Joana não era chegada a comentários. Cada um que cuidasse de si mesmo. Conheceu muitas pessoas que realmente procuravam a saúde e viu alguns tombos feios de alguns colegas que abusavam da velocidade nos pés. Saiu gente enfartada lá de dentro. Não adianta comer mal e correr. A vida noturna passa pela academia desapercebida. Observou que alguns jovens iam à academia para programar as noitadas no fim de semana. Joana, a tartaruga acadêmica, devagar e sempre, conseguiu tirar as mãos das laterais da esteira sem ter medo de cair com o nariz no chão. Ganhou a autoconfiança destruída nos tempos difíceis. Com tanto empenho, chegou o dia em que ela ficou apta para ajudar alguns novatos. Não na esteira, isso seria um exagero. Conseguiu forças para dar apoio moral àqueles que tiveram sérios problemas familiares. Com cautela dava um palpite aqui e outro acolá. Não era psicóloga e cuidava para não se transformar em um charlata. Algumas situações constrangedoras, casos que os psicólogos não resolviam, Joana resolveu. Ela ficou conhecida na academia. Surgiu o ciúme. O corpo dela estava sarado, malhado e outras freqüentadoras quiseram saber como ela obtivera aquele corpo. O medo de morrer lhe dera aquele corpo. Ocultou de todas as ciumentas o trabalho de corpo e mente que fazia no recinto. Dizia que era uma obrigação manter a saúde e a aparência em dia. Os seus amigos conheciam o seu problema. Isso bastava a Joana. Ela, que já tinha desistido de encontrar amigos e amigas, os encontrava agora, nos bate-papos sociais. _Digam o que disserem, confidenciou-me Joana. Os bons amigos existem. Eu acredito na Joana. Não sinto ciúmes do João Carlos e da Clarice. Eu não faria nada melhor para ela. Aliás, eu nem saberia como lidar com uma situação dessas. Ela continuou discorrendo sobre o seu drama pessoal, mas com um sorriso nos lábios. Contou-me sobre os assanhados da academia. Se existisse algo melhor do que ganhar uma cantada enquanto se está perturbada emocionalmente, ela desconhece. _Você está com a mente voltada para cada passada na esteira, em busca da superação pessoal, e vem o ginasta da esteira ao lado e pergunta por que você esconde o seu corpo em um uniforme de moletom duas vezes maior que você. Você começa a rir da sua solidão, da sua tragédia pessoal. Você não pode dar muita confiança para ele, mas acaba gostando da cara de pau do moço, que está procurando uma companhia para passar o tempo. Quando se é absolutamente só, do jeito que eu estava na época, as cantadas me ajudaram psicologicamente. Não namorei ninguém, mas fiquei querendo bem. Gratidão mesmo. O melhor é que poucos acreditam na minha pureza de sentimentos quando eu falo em gratidão. O povo gosta é de histórias quentes com muito sexo. Esse assunto gera boas risadas nas academias. Cautela para as mulheres porque os homens gostam de canja. Do trauma aos risos e às gargalhadas. Um casal sem filhos cuida de uma mulher de trinta e cinco anos com carinho, sem segundas intenções. Suponho que eles também se sintam sós, eles também precisam de amigos sem segundas intenções. Joana mudou muito. É só ainda, mas aprendeu a se compreender, a se perdoar e até a perdoar algumas pessoas. E eu, que não passei por nada disso, que estou triste com algumas ironias que ouvi. Ironias que me acusam do que eu não fiz e me magoam. Contei à Joana o motivo da minha tristeza e ela me pediu que eu me importasse com aquilo que eu pudesse fazer de verdade e não com as coisas que eu não fiz. As coisas que eu posso fazer são mais importantes, segundo ela. Eu posso as fazer para o bem e para o mal dos outros. Eu tenho que cuidar para não fazer mal às pessoas. Disse-me para eu não falar da minha tristeza para aqueles que já estão tristes. Isso pode fazer mal a essas pessoas. Então, num apelo franco, ela frisou: _Por mais que você esteja ferida, irritada e com vontade de brigar ou chorar ou gritar em consequência dessas provocações, pense naquilo que as pessoas precisam, um sorriso, um abraço, um conforto. De tudo o que eu vivi e aprendi nestes anos todos, eu cheguei a conclusão de que o dinheiro manda, mas o afeto rege. As arapucas da estrada muitas vezes nos impedem de andar na linha e consequentemente de um trem passar por cima da gente. Dessa conversa com a minha amiga Joana eu não quero esquecer nenhum detalhe. Que lição de vida eu recebi.

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